
No ano em que eu comecei a fazer a minha faculdade de cinema eu precisei me mudar para uma cidade distante da casa de meus pais. Eu tive que aprender a me virar sozinho e isso, caros amigos, não foi fácil. Sorte minha que consegui alugar um pequeno apartamento em um certo edifício no centro da cidade. Era um prédio velho e mal acabado, era bem visível que as pessoas ali viviam em situações muito precárias.
O muro estava quase completamente coberto por mofo e algumas das pontas de lanças do portão estavam danificadas. Havia também alguns vasos de flores que davam uma aparência mais serena e arborizada ao local, mas nada que mudasse muito a primeira impressão que se tinha ao se deparar com aquele pequeno prédio de quatro andares que mais parecia uma casa mal assombrada. Eu não costumo reparar nos detalhes dos lugares por onde passo, mas é impossível deixar de citar algumas coisas que vi no exterior daquele edifício. Pneus jogados no chão e tapetes rasgados, pó e poeira por toda a parte, cacos de vidro espalhados pelo chão e o que mais me chamou atenção em tudo aquilo, uma cadeira de rodas. Uma cadeira de rodas nova e brilhante, de alguma forma aquele objeto não fazia parte do cenário onde eu estava. Era muito novo para aquele edifício. Era como se a cadeira de rodas pertencesse à um mundo e o edifício pertencesse à outro e, de alguma forma, os dois mundos se uniram naquele canto de parede transformando aquela visão em uma sensação da qual eu nunca esqueci. Olhar para aquela cadeira de rodas me fazia mal, me trazia um sentimento ruim, um mal estar. De alguma forma aquela cadeira de rodas estava se movimentando, talvez apenas em minha imaginação fértil e excessivamente criativa, mas de alguma forma aquela cadeira de rodas se movimentava sozinha. Não só se movimentava, mas gemia. Sim! A cadeira de rodas gemia, e era um gemido assustador, igual aos gemidos que são ouvidos durante a noite nos hospitais. Horrível.
Meu quarto era o 8. Haviam dois apartamentos para cada andar, logo, meu quarto ficava no último andar vista para os fundos do prédio. Não era muito aconchegante mas eu não tinha escolha. Tinha que ficar ali pelo menos até eu encontrar algo melhor ou desistir de levar pra frente meu objetivo de vida de me tornar um cineasta formado. O quarto era o lugar mais confortável, tinha pouca luz e as janelas eram de madeira. Lugar perfeito para ter boas e longas noites de sono.
Mas eu estava enganado, caros amigos, eu estava enganado! Logo na minha primeira noite de sono os “fatos” começaram a acontecer, e esses “fatos” dos quais logo vocês saberão a descrição, foram fundamentais para que eu me apavorasse por completo a ponto de desejar a morte! Eu não conseguia agüentar por muito tempo. Aquilo era tortura para os meus ouvidos! Aqueles sons aterrorizantes que vinham do apartamento de baixo eram simplesmente intrigantes - Tenho certeza de que não vou conseguir descreve-los à vocês, mas vou fazer o máximo que eu posso.
Ruídos de pequenos e rápidos instrumentos atravessando o teto do apartamento de baixo e indo em direção a minha cama. A sensação que eu tinha era que inúmeras mini-furadoras estavam perfurando o teto e logo perfurariam a minha pessoa se eu não saísse dali depressa! Aquele barulho ensurdecedor era o suficiente para que eu fosse à loucura. Não demorou muito para eu perceber que, mesmo que quisesse, não podia sair da cama. A cama estava me prendendo a ela e eu estava completamente imóvel. Meus músculos estavam atrofiados e eu me sentia velho, me sentia velho demais para me levantar da cama e andar até a porta. Eu não tinha forças para gritar e sentia como se minha garganta tivesse sido arrancada. A dor era insuportável e eu me lembro bem de olhar para o teto e ver que o teto estava desabando gradativamente em direção a mim. A única coisa que eu podia fazer em relação a tudo isso era fechar os olhos. Os meus olhos eram as únicas partes do meu corpo que eu ainda tinha algum controle. Foi o que fiz, fechei meus olhos e esperei ansiosamente para que tudo aquilo acabasse depressa e que o dia seguinte chegasse logo.
O sol nasceu e eu estava novinho em folha. O teto, como esperado, ainda estava lá. E o chão não havia sido perfurado. Teria eu sonhado com tudo aquilo ? Mas parecia tão real! Todos aqueles sentimentos agonizantes e desesperadores, todas aquelas dores malditas, todos aqueles sons ensurdecedores e apavorantes! Teria eu sonhado com tudo aquilo ? A primeira providência que tomei naquela mesma manhã foi ir até o apartamento de baixo tirar tudo isso a limpo. Eu queria saber quem morava naquele lugar e ter certeza de que tudo aquilo que havia passado na noite anterior era um delírio causado pela distancia em que eu estava da casa de meus pais, ou ter certeza de que havia sido real.
Bati na porta do apartamento e quem me atendeu foi uma velha. Uma velha que aparentava ter uns oitenta e dois anos de idade. Ela apresentava um grande número de rugas e seus cabelos, longos e brancos, estavam completamente rebeldes para cima. Sua aparência lembrava a aparência de uma árvore após a primavera, seus longos galhos tortos para cima formavam exatamente o mesmo formato de seu penteado. Seus olhos eram quase completamente brancos, salvo uma pequena bolinha negra bem no meio deles. Ela usava uma camisola preta e chinelos brancos. Suas mãos eram trêmulas e em um de seus dedos havia um anel de prata estranhamente grande. Sua respiração era ofegante e causava arrepios, ela praticamente respirava cinco vezes mais intensamente do que eu. Era uma respiração profunda que parecia fazer um esforço tremendo para jogar ar em seus velhos e esgotados pulmões. Não demorou muito para ela me chamar para entrar em seu apartamento, e eu não demorei muito para aceitar. Eu queria saber o que havia lá dentro e essa seria uma grande oportunidade. A velha, apesar da aparência me pareceu simpática, tratou de preparar um café enquanto eu procurava por pistas em seu apartamento.
- Você gosta com muito ou pouco açúcar meu jovem ? – Disse aos berros silenciosos da cozinha.
- Não se preocupe com isso senhora, gosto de qualquer jeito. – Disse eu aproveitando que estava sozinho e procurando por alguma coisa que me levasse a solução do mistério dos barulhos da noite anterior. – Mas se a senhora quiser colocar muito açúcar eu prefiro. – Disse eu tentando atrasar a velha para que eu pudesse ficar mais tempo sozinho naquela sala solitária. Mas por mais que eu procurasse, aquela sala nunca me diria uma palavra se quer. Era uma sala normal, com uma estante, um sofá e uma mesa com bordados em cima. Nada de anormal havia naquela sala, era exatamente igual a qualquer outra sala de um idoso na idade em que ela se encontrava. Bordados e tv, as duas diversões que atraiam a terceira idade. Estavam lá, as duas. E nada de suspeito encontrei naquele apartamento.
Tomei o café e troquei algumas palavras com a velha sobre a situações precária do prédio. Ela me disse que o antigo dono perdeu o prédio em um jogo e desde então a situação dos moradores só vem piorando cada vez mais. Contei à ela o motivo pelo qual eu estava ali e disse que eu não ficaria por muito tempo, ela chegou até a me sugerir um outro prédio que ficava no quarteirão de cima. Muito simpática a senhora.
Cheguei da faculdade naquele dia ás nove horas da noite. O prédio estava completamente em silêncio, não podia se ouvir nem um ruído se quer. Todas as luzes estavam apagadas exceto a luz que iluminava o corredor que ligava o portão até a porta de entrada. Tratei de apressar meus passos enquanto eu cruzava aquele caminho escuro e sombrio, não estava afim de ser assustado por nenhum gato ou rato que vivia ali sem o meu conhecimento. Eu só queria chegar até a porta de entrada, e quando eu estava quase chegando...uma sensação tomou conta de todo o meu corpo. Eu não conseguia andar mais para frente porque tinha certeza absoluta de que estava sendo observado. Virei minha visão para o local onde eu desconfiava que estavam me observando, sim, era o cantinho escuro onde ficava a cadeira de rodas que eu havia visto no dia anterior. Agora, a cadeira de rodas não estava mais ali, e a cena que eu presenciava era a coisa mais assustadora que eu já tinha visto em toda a minha vida. Meus olhos se fixaram naquela horrorosa visão, minhas pernas ficaram trêmulas, um frio insuportável subiu pela minha coluna e foi estourar o seu clímax em minha nuca. Meus lábios estavam secos, minha pele estava pálida. Aquela visão tomou por completo todos os meus pensamentos. Tentar descrever tal coisa com exatidão é impossível, pois nem eu sei até onde na minha memória aquilo era verdade e desde qual ponto a minha imaginação agiu.
O que eu me lembro bem é de ter visto a velha com o corpo virado para a parede, olhando bem de perto para os tijolos, com as pernas curvadas para trás fazendo um movimento que nem os meus ossos eram capazes de fazer. A camisola preta não deixava com que eu soubesse se a velha estava de costas ou de frente, pois a camisola era igual dos dois lados. O sangue escorria pelo pescoço da velha e ia até ao chão, formando uma poça enorme de sangue em volta dela. Eu não sabia se a velha estava de fato morta, pois ela estava de pé sem se apoiar em lugar algum! Mas como pode um ser humano curvar todo o corpo para trás sem quebrar nem um osso se quer e se permanecer de pé durante tanto tempo ? De repente algo de mais surpreendente aconteceu. A velha, num piscar de olhos, foi sugada pela parede em um movimento quase instantâneo. A brutalidade com que ela foi engolida pela parede fez com que ela quebrasse todos os seus ossos e que os sons horríveis de seus ossos quebrando se propagassem até meus ouvidos, causando um arrepio indescritivelmente horríveis. Tratei de olhar os tijolos para ver se eles haviam sido danificados após o impacto da velha com a parede, e por incrível que pareça, eles estavam intactos.
Naquela noite eu não consegui dormir, pensava o tempo todo nos fatos que haviam acontecidos durante a minha permanência naquele edifício sombrio. Tudo que eu mais queria era sair daquele lugar e correr para bem longe dalí, para qualquer ponto da cidade! Qualquer lugar era melhor e mais seguro do que aquele edifício. E foi o que eu fiz, eu corri o mais rápido que pude para bem longe daquele lugar macabro. E ainda me lembro, que ao dar uma última olhada para o prédio, eu pude ver que a disposição das janelas e o formato das rachaduras formavam a silhueta do rosto de uma velha. E ela sorria.
Hudson Carvalho